segunda-feira

Ninguém se lê - Coluna #13QueridosBandidos

Publicado originalmente em http://manazinabre.blogspot.com no dia 13/12.

A coluna completou um ciclo. Durante um ano trouxe a público o que me importunou, quis que os importunasse também. Os coletivos e as ações individuais que me chamaram a atenção, as iniciativas e apostas nas quais apostei e as perguntas que me tiraram o sono, tudo isso eu arranjei um jeito corrido e mal escrito de mostrar. E como balanço, trago um balanço. Na reta final deste 2009, vieram por diversas fontes novas, apesar de já vividas na prática, questões.

Primeiro. Ninguém se lê. O blog serviu nem de vitrine, já que não teve acesso algum. Continuamos não nos conhecendo, e continuamos ainda mais longe de estabelecer qualquer troca a níveis de influência ou linguagem. Isso não é um problema desta casa. E esse é um dos temas que trago.

Começo com Victor Turner. O cara é da antropologia, inglês, produziu durante uns 50 anos, tem uma obra vasta, mas vou trazer só um conceito dele, o de liminoide. Pro Turner, com a Revolução Industrial houve um deslocamento da ação de produção simbólica, ela deixa de ser parte da coluna vertebral da vida social (religião, trabalho, família) e vai para as margens da vida social (leia-se: as ciências modernas, a arte, o entretenimento). Esses seriam os gêneros liminoides, fenômenos de influência individual, mas de desdobramentos de massa; que estão relacionados à mercados de entretenimento, e que sem fazer parte da vida obrigatória do indivíduo, são tomados como parte essencial do cotidiano, já que o único vínculo com esses fenômenos é o do prazer, e do desejo, esses últimos raros na contemporaneidade.

Assim os gêneros liminoides do Turner passam a ser pontos de fuga e ao mesmo tempo produtores de diretrizes para a produção simbólica, para a subjetivação, e interpretação da vida social. Para ele, a reformulação nos valores e princípios da vida social que o fenômeno liminoide pode trazer, pode ter inclusive desdobramentos revolucionários.

Porque eu trouxe esse raio de teoria antropológica pra cá? Por causa disso: pra reafirmar a história de que a arte pode ser transformadora, e nós os artistas de sofá, temos algum papel.

E aí vou à segunda parte da conversa. O papel do artista. Recentemente houve na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, o Seminário Nacional Formação e Estatuto do Artista. Especialmente me chamou a atenção a fala de uma das cuidadoras da Fundação Joaquim Nabuco para assuntos de arte, Cristiana Tejo, ela é novinha, reivindica a geração mangue beat, e encurtando a história, falou muito sobre um aspecto que ela acredita essencial para a postura do artista: o fato de o cara conseguir falar sobre seu próprio trabalho. O artista não precisa ser teórico e crítico de artes mas, saber justificar minimamente os trâmites e os processos experienciais e conceituais que o levaram a concluir o seu trabalho como tal. O artista tem que saber qual é sua questão e quais as etapas de conflito e resolução que traz para essa questão.

Aí volto a seta para nós: no caso específico do cenário em que me encaixo não sei se os artistas não sabem falar sobre o seu trabalho, ou se não querem, ou se lhes falta oportunidade para tal. Se o caso for a primeira resposta ou a segunda, isso é uma merda, já que serve para reificar a ideia de que o gênio, o dom, o inato existem em arte. Posto que essa ideia já é criticada e revista o suficiente para que a deixamos de lado. Se o caso é a terceira resposta, isso também é um merda, porém, parte já de um pressuposto melhor, seja, de que os artistas querem trocar experiências, querem desmistificarem-se, porém ainda não encontram fóruns para tanto, ou seja, já tem a postura de que precisam para pensarem francamente sobre suas questões, mas falta ainda o lugar para que possam pensá-las em público.

Ainda tendo-nos como tema, levanto uma crítica séria à nossa postura, os artistas que estão em volta e dentro desse cenário em que me encaixo, passam muito pouco de público para as bandas que fazem parte do mesmo cenário. E aí me enquandro. Os escritores e artistas visuais não conhecem o trabalho uns dos outros, os músicos e front man’s da cena não trocam a não ser música, falta interação de linguagens e de motivo. Conhece-se o som que faz da turma, mas não as letras e raramente as imagens. Como reivindicar-se coletivo partindo dessa postura? Como continuar querendo público se nem nos prestigiamos uns aos outros, e quando o fazemos não estabelecemos qualquer vínculo de trocas ou crítica ou reflexão acerca do nosso trabalho? Essa é a questão do dia.

Mercado, produção executiva, inserção nos meios em que, como oficiais do ofício a que nos propomos, deveríamos nos inserir, isso fica para a próxima conversa. Feliz ressaca de ano novo.

Um comentário:

Tenório disse...

Ô Heyk,

Sinto-me igualmente afligido por essas suas questões, são pontos muito interessantes e pouquíssimo refletidos entre nós.

Isso tudo me divide porque vezes tenho certeza de que isso que você almeja - que os contemporâneos se leiam e se unam - é uma coisa que foge ao nosso controle - olha que papo de tragédia grega -, sim, o surgimento de um movimento, de uma ideologia, é um troço tão cheio de fatores ‘naturais’ que tentar forçar o manejo desses, é quase impossível.

Mas... Por outro lado, não me conformo também. Fico imaginando - de verdade, traçando metas e estratégias - que será que é preciso um líder carismático, um Noel, um Mário ou Oswald, um Chico, um Cazuza, um Gonzaguinha, um Caetano para mover as partes? E daí saio por aí querendo ser olheiro, querendo achar essa pessoa agregadora, risos. É preciso uma ditadura, uma semana de arte moderna, o escândalo? O que então?

Depois penso que tal ação só acontece quando o inconsciente coletivo encontra um diapasão em comum, uma só voz mesmo - coisa de comercial de fim de ano da Globo. Tem uns caras extraordinários que aparecem de quando em quando e, saindo de dentro de si, conseguem colher a subjetividade que assola uma geração. É um troço difícil da porra. Tem uma escritora chamada Ana Paula Maia, o pessoal anda falando muito nela. Eu gosto e recomendo. Dizem que, num certo aspecto, ela fez isso: uma leitura dum sufoco que passamos. A brutalidade secando as pessoas por dentro. O Jabor outro dia disse isso: que o artista tem que agora insistir numa arte de delicadeza, uma volta à uma construção emocional, porque o homem está ficando bruto, sem substância interna.

Sei lá. Volto a dizer que é um troço que não se controla, é tipo a iluminação budista: acontece de repente - mas vinda de uma sucessão de esforços pra tal. Mas se é pra tentar dar lógica ao que não tem lógica, acho que - concordando muitíssimo com você - primeiro temos que nos ler, sinto isso, ninguém lê contemporâneo, só os mortos. Eu falo para minha mulher: só gosto de livro e autor novos, pois são estes que estão vivos aqui e agora, são eles que vivem aí fora e trazem pra dentro do papel a angústia de uma época, são eles que me interessam.

A segunda coisa, e isso é muitoooo difícil, é - na marra - encontrar esse diapasão, esta sede que ninguém sabe de quê, mas, quando diante do elixir, afirme: Ah! Era isso que eu queria tomar, só não sabia! Obrigado, artistas. Daí quando essa fome - antes era sede, viu como estou bem? risos - se multiplicar acho que um movimento, uma revolução cultural pode acontecer... Ou estou sendo apenas simplista, idealista demais...

Não cheguei a lugar nenhum, é o que estou sentindo enquanto escrevo essa linha. Como diz o seu último poema: ‘quanto é o enquanto?’. Mas enfim, tive vontade de escrever. É isso.

Saudações

Tiago Tenório

P.S.: escrevi para você no poema dia. E amanhã, que é meu dia lá, acho que vou colocar algo inspirado nesse seu estudo interessantíssimo da Autopoiese. Abraços.

crédito do desenho no cabeçalho: dos meses duro, nanquim sobre papel, 2010 Philippe Bacana