quinta-feira

A Chuva

Aqui há uma igreja, esse continua sendo um empreendimento e tanto. Já tinha esquecido como um caderno e tinta podem atenuar ou emplacar sólida de outono uma solidão. E as linhas de que me valem se não vou mesmo segui-las?

O tempo é onde nada há e de baratezas em baratezas, sinto aproximar-se um vento novo. A igreja é velha como a igreja e olhá-la não me cansa, o sol a amarela. Meu segundo café não é mais sabor abelha, a única que havia morreu afogada durante o salvamento. Ela e os moradores das encostas, morreram vomitando lama.

Esse bar se chama academia, é próximo da antiga politécnica e o nome deve fazer jus aos antigos engenheirandos que o frequentavam ou nunca frequentaram. O bar velho perto da igreja velha.

O advento das chuvas deve ter deixado a cidade triste, ao menos sisuda. A universidade decretou uma semana de feriadoluto e hoje mais cedo quando tentei comprar cigarro em uma banca de jornal a luz interna apagou, metade dos clientes a deixaram praguejando, apesar de não ser nem meio dia era quase noite, como quem diz “vai começar de novo” foram para a avenida rio branco, com medo de nova falta de energia, nova complicação nos transportes, quem sabe mais um feriado forçado, deslizamentos novos, medo de um mundo novo emergindo das águas.

Vi no mural, ao pegar o elevador da faculdade a notícia de missa pela alma de um aluno, pensei que fosse um conhecido e que tivesse morrido de chuva, como esses duzentos que logo serão noticiados. Nem uma coisa nem outra, seu nome era Amon e talvez só o tenha visto, talvez já tenhamos trocado olhares entre uma e outra escadaria, mas só, e nem foi essa semana de tragédia, a missa era de sétimo dia. Choveu na terça-feira o suficiente para dois abris. E não há nada que mantenha esse cigarro aceso. Vejo alguns buracos de azul nessas nuvens, há sol e vento de outono. Finalmente o outono chegou e as estações são tão longas ou a memória do meu corpo tão curta que é bom reaprender como é o outono, que achava mesmo que não voltaria, que ficaria eternamente com cheiro de suor pela casa suada e suja.

Nessa falta encabeçada pela suspensão da rotina, a ligação da mãe, amigas avisando que estão salvas mas cansadas do dilúvio, acredito mesmo que escolho os amigos pela beleza, nem sei que fim Tomaz terá levado. E por um motivo parecido, entendo tanta paixão pelas amigas, tanta que me deixo levar tanto, que tem tempo não vejo eu algum.

4 comentários:

Victor Meira disse...

Tá aqui, o coração esparramado na frigideira. Lindo de se ler, de ver uma alma nas entrelinhas e nas linhas.

Guto Leite disse...

Fiquei de pé atrás com o tema a princípio, depois foram todos os pés à frente. Sensível e (como disse o Victor) de se ver a alma, exposta à frente do corpo do texto. Grande abraço!

Rachel Souza disse...

Olha,a mim parece um processo catártico. Parece que é você processando todos esses dias cheios de informações, o desastre, as amigas, a suspensão doida da rotina,a morte do conhecido desconhecido... A chuva como catarse. Tá bem íntimo, diferente do que usualmente escreve. Gostei dessa cara.
Pra terminar com uma confissão: Essa coisa toda que tem acontecido por aqui, no Rio, junto com umas questões minhas, me deixou bem triste, com uma sensação de não pertencimento, de desajuste, de falha. Acho que o caminho da sanidade deve ser esse mesmo, surtar, realocar uns troços e jogar fora uns outros. Um viva à quebra!
Beijo.

Gaja disse...

Pois é, nunca vi o Rio assim, amargurado, nervoso. Sempre me impressionou (como um turista que sou) a agitação, a fervura e a capacidade das pessoas aguentarem as condições de vida daqui. O enclausuramento, junto com as notícias trágicas, tiraram toda essa capa, esses contrapesos. Vi pessoas sisudas, atritos, raiva. Há um Rio que não aguenta, que parece dar um basta!
Seu texto para mim expressou bem o que senti também, gostei muito da forma como juntou as imagens. Viva o novo realismo! bj

crédito do desenho no cabeçalho: dos meses duro, nanquim sobre papel, 2010 Philippe Bacana