Utopia, animalidade,
desastre e testemunho estão em Panidrom,
todas as remoções numa só.
Panidrom é uma peça de trajeto, as cenas
acontecem se formos atrás delas, como é habitual em companhias como o Teatro da
Vertigem (BR3, Bom Retiro 958 metros) e a cia. São Jorge de Variedades (Barofonda).
São dez atores em cena, seis músicos, um carro, mais diretores e dramaturgos,
captadores de áudio e vídeo, iluminadores, fotógrafos, fazedores de gifs.
Para a
construção de uma represa, um bairro será alagado. Seus moradores serão
removidos e outros bairros do entorno já estão embaixo d’água. Um time padrão
de desgraçados, crianças sem família, mendigos, loucos, prostitutas, usuários
de drogas, famílias incompletas e gente sozinha dentro e fora das barrigas são
atraídos e guiados a uma terra de promessa, seu nome é Panidrom.
Dentre os
integrantes da peça está gente que vem testando a rua como suporte e objeto, como
experimentação de formas de viver, saber, fazer e prazer. Gente como as artistas
visuais Cassia Lyrio, Gaya Rachel e Brenno de Castro e os músicos Guilherme da Mata e Renan
Montuno. Um stêncil de Cassia e Gaya que é encontrável pelas ruas do Rio traz
duas mulheres de mãos dadas, pretas, velhas e pobres, cada uma com um facão na
mão. Estão prontas e não têm medo. Essas duas mulheres estão também nos muros
da Praia Vermelha. Marenka, uma das personagens da peça, poderia ser uma delas.
É
interessante pensar também que de alguns anos pra cá a música e a cultura
ciganas passaram a fazer parte da vida de alguns grupos das grandes cidades. A
trilha da peça, vista ao vivo e em cortejo, tem matriz cigana. Não há como não
ver nela a banda que acompanha os ladrões de banco nas primeiras cenas de Underground – Mentiras de Guerra, de
Emir Kusturica. O nome Panidrom (estrada
para a água) é uma referência ao filme Latcho
Drom (rota segura) de Tony Gatlif, que mostra a diáspora do povo cigano
desde a Índia até a Espanha e a transmissão dessa cultura às crianças. Como os
ciganos, os habitantes de Panidrom não encontraram ainda seu lugar, são os
eternamente removidos. Os atingidos por barragens, os perseguidos por grileiros
urbanos e rurais, os removidos para os grandes eventos, as favelas incendiadas.
Marenka tem
olheiras, carrega sacos de lixo, está grávida. Desconfiada e gritalhona, mas
contente, segue o cortejo dos removidos, Peixe, Melanias, Puta, Zoé e sua irmã,
Homem Chamado Cavalo. Um carro de som e um picareta profissional com ares de
apresentador de programa de auditório é o chefe da excursão. Em nome da
construção da represa, Lopez, o picareta, promete moradia, pilates, churrasco e
vida mansa em Panidrom. Com ares de líder messiânico, congrega e convence os
removidos, eles o seguem cantando, a banda faz parte dessa promessa.
Essa
diáspora (cujo único porto aceitável é a miragem bíblica, a terra prometida, o
sonho de bonança e leite e mel) me remeteu à outra peça montada na mesma praia,
entre as universidades UNIRIO e UFRJ. Xambudo
– outro lugar nenhum, texto de Aderbal Freire Filho e direção de Ticiano
Diógenes, veio a público em 2010. Xambudo é um país. Num acontecimento mágico,
uma ilha se desprende do continente e passa a navegar no rio da Prata, entre
Brasil, Argentina e Uruguai. Um homem, uma mulher e um cachorro escrevem uma
constituição e exigem reconhecimento de seu país recém fundado. O bordão que
guardo de Xambudo: “o realismo fantástico é a saída política para a América
Latina”. Panidrom-Xambudo, utopias. A diferença é que uma
é autonomeada e autônoma (o único homem de Xambudo desafia os presidentes
Menen, FHC e Sanguinetti a um duelo mano a mano, quem vencer decide se Xambudo
é ou não um país), a outra é uma “mentira de guerra”. Panidrom é murada. Não tem
casas, nem nada, só “Seco de céu da boca do bicho de ranço de nada”, diz Melanias. Não
tem água, nada, os moradores começam a juntar cuspe num balde, “temos que
economizar em tudo”, diz Marenka.
Assim como
o stêncil, a música cigana, as peças de rua, a utopia e o como viver junto são
temas recorrentes nas conversas e nas propostas artísticas que presencio por
aí. Todos querem saber se ainda há forma de respirarmos tranquilos um dia. Em Panidrom não é diferente, é êxtase que
carrega as pessoas atrás do carro de som, dançam como quem renasce, como quem
conhece a fome e a sacia.
O que vem é
o desastre, é mentira, não há terra boa, nem água, nem teto. Lopez, o picareta
de auditório, tenta fugir mas é pego e feito prisioneiro. Começa a
sobrevivência. Em assembleia, os novos moradores desse lugar sem casas decidem
construir ali seu futuro, agregam o prisioneiro e começam as obras.
Januária
guarda um saco de terra da casa antiga, guarda bonecas, flores, caixas de
pessoas que podem voltar, podem sentir falta daquilo. Januária é a sobrevivente
que quer montar a memória dos seus, como os sobreviventes dos campos de
concentração, cheios de óculos e anéis nos bolsos, queriam levar adiante a
história das vítimas, outras pessoas precisavam saber o que aconteceu. Januária
é Yuri Firmeza enchendo o MAR de escombros dos removidos do Morro da
Providência, de removidos do Morro do Castelo. Januária é a memória de todos os
removidos de todos os tempos, o fio colado a todas as diásporas. “Aqui as
mulheres tem que se ajudar e os homens tem que ser menos homens”, conclama na
assembleia.
Mas chega a
fome, o delírio, a desigualdade. A Puta é apedrejada. O Melanias foge. Zoé é
criança, especula outras dez futuras remoções e enlouquece, se esconde para
sempre numa “árvore imortal de frutos infinitos”. Não à toa é zoé – a vida fora
das regras, fora das classificações, o caos que somos todos, plantas, bichos –;
ao perceber seu lugar de desempoderada, seu lugar de ser fome e sede, Zoé não
topa as regras, vira bicho, planta, nunca mais desce, só fugindo Zoé continua
sendo zoé.
O Homem
Chamado Cavalo (nome de batismo feito de um verso de Stela do Patrocínio, poeta,
preta e profética, dado ao personagem preto, poeta e profético enrolado em
cobertor azul, “escolhi o azul porque o azul estava desprezado, meu tênis já é
vermelho, por que eu ia querer o manto vermelho? era mais bonito, mas o azul é
que ninguém queria, eu quis”) toma a Puta por santa mãe e quer que ela o abençoe,
sua forma de pedir a bênção e o furor da sua fé são tão violentos quanto as
pedras.
O peixe tem
convulsões por estar fora d’água, ao receber o cuspe de seus patrícios e ficar
molhado novamente, sobrevive, se levanta, puto, cospe em Marenka. Começa o
trabalho de parto, mas Melanias volta com novidades de sua fuga, o filho de
Marenka não será habitante de Panidrom.
Talvez a
utopia seja mesmo a dos piratas, a dos ciganos, a utopia de Pinto Calçudo,
personagem de Serafim Ponte Grande de
Oswald, que comanda El Durazno, um barco república para habitantes sem calças
que navega os sete mares e para apenas para recarregar-se de abacates. A
utopia dos ciganos, que nunca estão em casa, sempre inventando a forma seguinte
de viver, num lugar novo, num outro possível. Os ciganos armam tenda para
desarmar. A utopia de Panidrom é a do
perecível, a do “ainda não terminou”, é incompletude, é precariedade, e o
sempre inacabado. Taraf de Haidouks ao fundo. Veja fotos, a equipe, o processo
e gifs fantásticos aqui: http://panidrom.wix.com/site
Serviço:
Direção: João Pedro Orban
Texto: Clarice Lissovsky e Tomás Braune
Piscina do Campus Praia Vermelha da UFRJ
16/12/2014, 20h
Gifs: Brenno de Castro
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